Projeto global quer transformar educação com escolas inovadoras até 2030
Mesmo com o cotidiano escolar tendo sido drasticamente afetado pela pandemia do novo coronavírus em 2020, organizações e educadores de escolas públicas e comunitárias de todo o Brasil avançaram durante o ano na construção de um projeto voltado a desenvolver, disseminar e avaliar boas práticas para a educação de crianças e jovens no país nos próximos dez anos.
A iniciativa, que tem o nome de Escolas 2030, é orientada pelo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 da Organização das Nações Unidas, que consiste basicamente em assegurar uma educação inclusiva e equitativa de qualidade, promovendo oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. O ODS 4 é um entre 17 objetivos fixados pela ONU para erradicar a pobreza e promover o desenvolvimento dentro dos limites do planeta até 2030.
O programa Escolas 2030 concluiu em 3 de dezembro uma etapa de formação iniciada no mês outubro, que envolveu mais de 300 pessoas de cerca de 120 organizações educativas de diferentes regiões do Brasil.
Previstos originalmente para ocorrerem de forma presencial nos territórios das organizações, os encontros e atividades foram adaptados ao formato remoto e buscaram apresentar as premissas globais do programa, provocar reflexões sobre métodos de aprendizado e avaliação e mapear estratégias já desenvolvidas nas escolas.
Essas trocas darão subsídio ao processo de “pesquisa-ação” empreendido pelo programa no país. A premissa do programa, segundo a coordenadora executiva Thaís Mesquita, é transformar a educação a partir do olhar de professores, estudantes e da comunidade escolar como um todo.
“Parece muito óbvio, mas é pouco feito, ainda mais considerando programas internacionais que costumam ter uma perspectiva de cima para baixo. Enquanto pesquisa-ação, o programa não estava completamente pronto para ser implementado nos países, é algo processual, uma construção feita de baixo para cima”, disse Mesquita a Ecoa.
Uma das definições já realizadas nesse processo se refere a quais aprendizagens o programa considera prioritárias para serem avaliadas no contexto educacional brasileiro. Pretendem medir o impacto de empatia, colaboração, protagonismo, criatividade e autoconhecimento na formação dos estudantes.
“Consideramos que estas são aprendizagens fundamentais, assim como ler e escrever. A demanda [por pessoas com estas capacidades] já existe, e não apenas para o mercado de trabalho. Um engenheiro que não é empático, que não consegue trabalhar em equipe, que não tem criatividade, acaba tendo seu desenvolvimento pessoal e profissional limitados”, diz a coordenadora executiva do programa.
Rever a forma e a finalidade das avaliações externas aplicadas às instituições educativas hoje no país é um ponto importante do Escolas 2030. O programa considera que essas avaliações devem servir menos para ranquear escolas e mais para aprimorar a aprendizagem dos estudantes.
No Brasil, o programa é implementado por uma parceria entre a organização Ashoka, a Faculdade de Educação da USP e o Itaú Social, e conta com a colaboração da associação Cidade Escola Aprendiz. Também será desenvolvido em outros nove países — Afeganistão, Índia, Paquistão, Portugal, Quênia, Quirguistão, Tajiquistão, Tanzânia e Uganda — ao longo da próxima década.
Educação integral e transformadora
Defendida pelo Escolas 2030, a ideia de uma educação integral e transformadora contrasta com o sistema escolar tradicional.
O aspecto integral se refere a uma concepção de educação voltada para o ser humano em sua totalidade e complexidade, na qual a escola não é apenas o espaço onde são trabalhados conteúdos de áreas do conhecimento específicas, mas também questões socioemocionais, sempre de forma relacionada. Ao mesmo tempo, a educação integral é inclusiva porque busca considerar a singularidade de cada indivíduo e as diferentes estratégias necessárias ao aprendizado de cada pessoa.
O componente transformador, por sua vez, consiste em colocar o estudante como protagonista de seu próprio processo de aprendizagem e conectar o conhecimento à realidade do aluno, tornando-o mais significativo e melhorando sua absorção.
De um total de 100 escolas que participam diretamente do programa no Brasil, 14 integram o grupo das chamadas organizações-polo, instituições espalhadas pelo território nacional selecionadas para coliderar o processo de formação frente a outras escolas de sua região.
Além de serem todas instituições públicas e comunitárias, as escolas que integram o Escolas 2030 no país tem os requisitos de atender populações em contextos de vulnerabilidade e corresponder aos critérios de inovação definidos pelo Ministério da Educação — gestão, currículo, ambiente, metodologia e intersetorialidade —, para construir o Mapa de Inovação e Criatividade na Educação Básica de 2015.
Entre as organizações-polo do programa está a Escola Comunitária Luiza Mahin, localizada na periferia de Salvador. Com grande maioria de alunos negros, a escola tem uma abordagem de ensino que valoriza a cultura e a história afrobrasileiras e se estrutura a partir de três eixos: gênero, raça e pertencimento.
“Por ser uma pesquisa-ação de longo prazo, vejo o programa como algo que vem para sistematizar nossas práticas cotidianas, como uma forma de fortalecimento para a nossa instituição”, disse a Ecoa Valmira Ribeiro professora do ensino fundamental I e do grupo de coordenação da escola Luiza Mahin.
A professora explica que a escola trabalha com o recurso da metodologia de projetos. Define-se um “tema gerador” para cada ano e a cada mês de aula são trabalhados subtemas deste tema principal, sempre privilegiando assuntos ligados à realidade das crianças e associando o conhecimento popular da comunidade ao conhecimento científico introduzido pela escola. O diálogo constante com os professores e pais dos alunos a respeito das dificuldades enfrentadas é outro ponto importante da maneira como a escola atua.
Ribeiro aponta que a formação realizada entre outubro e dezembro serviu para aproximar as escolas e colocá-las em sintonia, trazendo um sentimento de estarem no caminho certo. Mesmo com as especificidades de cada contexto, ela afirma que as práticas das organizações inovadoras dialogam entre si.
O diretor da Escola Estadual de Educação Profissional Alan Pinho Tabosa, Elton Luz Lopes, também enfatiza a oportunidade de estar em rede com outras organizações inovadoras proporcionada pelo Escolas 2030.
Igualmente eleita como organização-polo pelo programa, a escola localizada em Pentecoste (CE) trabalha com a metodologia da aprendizagem cooperativa, baseada no protagonismo dos estudantes e na criação de um ambiente escolar de solidariedade e interdependência.
Além da atuação em rede, Lopes espera que o programa permita colocar em discussão e influenciar governos a respeito dos critérios de avaliação usados para medir o que é considerado educação de qualidade.
O diretor aponta que os parâmetros atuais de avaliação se preocupam somente com o nível de proficiência dos estudantes nos conteúdos específicos das disciplinas, deixando de lado o desenvolvimento de competências socioemocionais pelos alunos.
“Esses critérios precisam ser considerados ao avaliar a qualidade da educação e esperamos poder contribuir ao longo desses dez anos para o debate sobre o quanto a formação de lideranças cooperativas e solidárias, de agentes de transformação social comprometidos com a melhoria da sua escola, da sua comunidade e do mundo é extremamente importante para o sucesso dos estudantes”, disse Lopes a Ecoa.
Novas formas de avaliar
Foram estabelecidas cinco tipos de aprendizagem para dar base à criação de novos indicativos junto com equipes de organizações educativas brasileiras que possam contemplar o aprendizado que os alunos são expostos para além das provas. São eles:
Colaboração: Na tentativa de superar a atual conjuntura educacional, que valoriza a realização pessoal do indivíduo em vez do coletivo, olhará para as ações de coletividade. O que tem sido feito para a construção coletiva, bem como a educação que se dá de diferentes formas por meio dessa pluralidade, seja escrita, pela oralidade ou corporeidade, por exemplo, “para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos, além de produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo”, como diz o documento da proposta.
Empatia: Aqui, fala-se sobre como a escola consegue “adotar as perspectivas psicológicas, culturais, dentre outras, de modo a compreender o outro e, assim, tomar decisões e agir”, exercitando o diálogo e promovendo a solução de conflitos, com base em princípios democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.
Criatividade: “O ato de criar é um exercício de prazer e liberdade que, em sua essência, implica agir, realizar, inventar. A criação é gerada pelo movimento. Trata-se de competência multidimensional (social, cultural, política e ética)”, diz a proposta das Escolas 2030. Para dar espaço a essa criatividade, as escolas precisam, então, apresentarem-se como espaços mais flexíveis às novas formas de aprendizado. Cultivando sempre a curiosidade intelectual nos estudantes, “incluindo a investigação, a reflexão, o pensamento crítico e a imaginação, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.”
Protagonismo: “É o exercício de tomar iniciativas em prol da construção de um mundo mais justo, sustentável e democrático, buscando o engajamento e a participação de seu entorno. Para isso, é importante argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.”
Autoconhecimento: Por fim, a definição das cinco aprendizagens se estende para o reconhecimento dos alunos sobre a própria história, que podem criar laços entre os colegas, familiares, comunidade e espaços do território. A escola, então, pode ser avaliada a partir da construção que consegue proporcionar ao estudante sobre si mesmo, compreendendo-se principalmente como parte de uma diversidade humana, o que o levaria a valorizar também a diversidade de saberes e vivências do Outro.
Os desafios do Brasil
As metas estabelecidas pelo quarto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU estão contidas no atual Plano Nacional de Educação, que estabelece diretrizes para as políticas públicas de educação no Brasil no período de 2014 a 2024.
Em 2019, primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro, houve estagnação dos indicadores educacionais relativos às taxas de alfabetização de jovens, alunos em escolas de tempo integral, educação profissional e acesso à universidade. O crescimento desses índices está entre os objetivos estipulados pelo PNE.
Professor da Faculdade de Educação da USP e coordenador geral da pesquisa-ação realizada pelo Programa Escolas 2030, Elie Ghanem destaca a formação qualificada de docentes, sobretudo para a educação básica, e o aumento da quantidade de bolsas para o ensino superior entre as dificuldades do contexto educacional brasileiro para o cumprimento do ODS4.
Outro ponto de caráter mais geral apresentado por ele como um obstáculo para atingir o objetivo de desenvolvimento sustentável relativo à educação no país é a predominância de um modelo educacional muito limitado, que não incentiva e não investe nas condições voltadas à proposta da educação integral e transformadora.
“Temos, não só no Brasil como em muitos países, uma concepção do sistema educacional estritamente como sistema escolar, que funciona de maneira hierarquizada, centralizada e altamente burocrática. Esses traços vêm se acentuando muito nas últimas décadas”, define o professor Ghanem em entrevista a Ecoa.
Segundo ele, a cristalização dessa visão sobre o sistema escolar tem resultado no fortalecimento de controles exercidos de cima para baixo sobre as escolas e os docentes. O coordenador reforça a necessidade de uma visão ampla de educação, em que as políticas não se voltem somente para a escola, mas para a multiplicidade de agentes que participam da educação, como a família e os meios de comunicação.
“É preciso inverter essa característica centralizadora, hierarquizada, do sistema escolar, garantindo crescentes graus de autonomia das unidades escolares”, diz Ghanem. “Para isso, é preciso que o professorado conte com liberdade e apoio para criar e que consiga assegurar o mesmo para os estudantes, para que eles sejam corresponsáveis na sua própria educação, e não simplesmente colocados como objeto da atuação de outras pessoas”.